É preciso ter visão. Onde queremos a cidade dentro de dez anos?

O arquiteto dinamarquês Jan Gehl defende urbes com menos carros, mais peões e mais bicicletas. O seu livro, com quase 50 anos, foi agora editado em português e ele voltou a Lisboa. Defende planos a longo prazo

Reprodução do artigo publicado no Diário de Notícias a 4 de Dezembro de 2017, por Lina Santos

arquiteto Jan Gehl | GERARDO SANTOS/GLOBAL IMAGENS

Em 1971, quando os carros invadiam o centro das cidades e o grande comércio era levado para zonas exteriores onde só se acedia de automóvel, o arquiteto Jan Gehl já defendia uma cidade entregue aos peões e aos ciclistas. Vem defendendo a mesma ideia desde então. Em Copenhaga, a sua cidade, e no resto do mundo. “A primeira coisa que me dizem quando chego a qualquer sítio é “aqui não é possível”, mas somos todos Homo sapiens”. A experiência mostra-lhe que é possível, explica em entrevista ao DN. Gosta de lembrar o que aconteceu em Moscovo, onde o ordenamento do estacionamento mudou de maneira drástica em cinco anos (e multas pesadas).

“É preciso ter visão. Onde queremos que a cidade esteja daqui a dez anos? Queremos que a confusão continue? Ou queremos uma cidade mais saudável, onde as pessoas podem andar? Queremos uma cidade mais verde, mais sustentável, fazendo a nossa parte pelo clima?”, pergunta, dando o exemplo de outra cidade: Sydney, uma das 200 cidades onde já trabalhou. “Têm, desde 2010, uma visão e como pretendem que seja a cidade em 2030. Será verde, vão promover o caminhar a pé, a bicicleta e o transporte público, limitar o uso de carros no centro… Ter estes planos de longo prazo é uma coisa boa para que não tenhamos políticos e partidos com programas populistas a quatro anos”, defende.

Falamos, então, de Lisboa. “Temos aqui algumas colinas, o que limita o uso da bicicleta. Claro que em algumas cidades vi usar bicicletas elétricas para fazer face à situação, portanto pode existir algum desenvolvimento. As respostas não são iguais para todos os lugares, mas se andarmos pelas cidades ocidentais elas são incrivelmente semelhantes. Têm carros, as mesmas lojas, fazem parte da mesma economia de marketing e da evolução tecnológica. Tomamos isto por garantido e dizemos que foi dado por Deus e não podemos mudar. O que é interessante é que algumas cidades começam a fazê-lo.”

O trabalho de Jan Gehl e da sua equipa parte de ideias que defendeu na investigação académica A Vida entre Edifícios, uma referência quando se fala de urbanismo, agora traduzido e lançado entre nós. À apresentação, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, seguiu-se, no dia seguinte, um encontro com a equipa que executa o plano de acessibilidade pedonal da Câmara Municipal de Lisboa, coordenado pelo arquiteto Pedro Homem de Gouveia, com início na livraria Tigre de Papel, que edita o livro em parceria com a Cicloficina dos Anjos. O grupo caminha por Lisboa. De Arroios à Almirante Reis e daí à Morais Soares.

“É difícil melhorar a qualidade numa cidade quando não há a pressão da economia”, afirma, dando como exemplo as mudanças operadas em Copenhaga durante a crise petrolífera dos anos 1970. Foi nesta cidade que as suas ideias começaram a ganhar forma. “Se Copenhaga tem feito tanto é porque começou há quase 50 anos. Todos os anos, passo a passo. As praças eram parques de estacionamento. As pessoas estavam esmagadas em pequenos passeios.” Hoje recebe anualmente 400 delegações de autarquias para verem o que foi feito.

A observação é uma das palavras -chave do seu trabalho. Mais do que a participação dos cidadãos. “As pessoas dizem que é preciso árvores porque é popular, mas é preciso ver.” A sua técnica é sentar-se e observar. “Ficaria surpreendida, se se sentasse numa rua de um bairro desde manhã até ao fim do dia, com as coisas interessantes – cumprimentos, crianças a brincar – que veria.”

Tradução chega 46 anos depois da primeira edição

Jan Gehl escreveu A Vida entre Edifícios em 1971. Foi a sua tese de doutoramento e propunha uma nova abordagem à cidade, com menos carros e mais peões. Traduzido em todo o mundo, faltava em português. Tiago Mesquita Carvalho empreendeu essa tarefa, com o apoio da Cicloficina dos Anjos, uma associação que ensina os cidadãos a conhecer as suas bicicletas. “Ganhámos um prémio, achámos que tínhamos mais qualquer coisa a dizer e propus traduzir este livro”, conta ao DN. Esse “algo” é dizer que tem de haver um equilíbrio e que o uso excessivo do automóvel tem consequências para a saúde, para a desvalorização dos edifícios…” Continua: Pedimos autorização e Jan Gehl disse que o livro era livre de direitos, porque foi feito com dinheiro público no âmbito de um trabalho académico”, explica o tradutor. A edição é da livraria Tigre de Papel em parceria com o Centro de Estudos para a Mudança Socioeconómica e o Território do Instituto Universitário de Lisboa. Foram editados 250 exemplares, mas um dia depois da apresentação da obra, a 16 de novembro, o editor Bernardino Aranda já pensava numa segunda.

[Correção: O livro A Vida entre Edifícios é uma edição da Tigre de Papel com a Cicloficina dos Anjos e não com o ISCTE como erradamente foi escrito.]

 

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